#5:'Ainda estou aqui'
Uma resenha sentimental de alguém que ouviu histórias demais sobre a ditadura
Em um dia qualquer da década de 70, um estudante de direito foge da sua pequena cidade natal perseguido pelos agentes do regime ditatorial que assustava o país na época. Ficou sumido não sei quanto tempo. Nunca chegou a ser pego. Marcou uma família com o eterno medo da violência estatal. Criou um espírito de agência em todos aqueles que estavam por nascer e por ouvir essa história. Criou em mim vontade de me organizar, de jamais ignorar a política e de aprender a defender o que eu acredito.
Com esse espírito de eterna adolescente que quer mudar o mundo e relembrar a memória dos seus que lutaram, fui assistir ‘Ainda estou aqui’.Sentada no escuro do cinema, compartilhei com todos na sala um choro muito sincero, de quem ficou de luto por aquela família de tanto amor, de quem queria carregar um pouco daquela raiva que Eunice carregava e que nunca explodiu em ódio.
Pensei por muito tempo o que eu escreveria aqui sobre esse filme, já que, obviamente, ele merecia uma newsletter só dele. Não sabia se elogiava elementos técnicos, se comentava as referências que peguei, se contava sinceramente o que eu senti. Essa última opção me pareceu a mais interessante…talvez a mais afetada pelas minhas experiências de jovem A La anos 70, que escuta os tropicalistas até demais e que admira aqueles que sobreviveram essa década tão traumática para os brasileiros.
Eu senti, desde o início do filme, um nó na garganta. Até nos minutos iniciais da obra, quando o objetivo era mostrar quão bonita era aquela família. Enquanto acompanhava os dias ensolarados da família Paiva no sobrado de dois andares à beira da praia, eu só sabia sentir o peso nas costas de quem sabe que o inevitável espera. Essa sensação de desarranjo no peito continuou o filme todo, me dando um suspiro quando o atestado de óbito de Rubens Paiva saiu - o que me fez pensar se essa não foi a sensação que Eunice sentiu por 25 anos.

Creio eu que essa sensação - essa tensão - foi o que despertou tanta emoção em mim e na audiência que dividia aquele momento comigo na sala. O pensamento de “e se isso tivesse acontecido na minha família?” pairava sobre minha absorção e compreensão da obra. Lógico que tudo que eu sei sobre esse filme foi influenciado pela experiência de perseguição da minha própria família, mas acho que até o mais insensível, e menos afetado durante o regime militar, dos homens se afetaria ao considerar a possibilidade do súbito sumiço de um grande amor. É impossível sair de uma sessão de ‘Ainda estou aqui’ em plena paz. A única reação possível é a indignação; é, pelo menos, a raiva perante o fato de que nenhum dos criminosos que torturou e assassinou Rubens Paiva foi punido.
Essa capacidade de despertar desconforto é intrínseca da história. Não tem como não sentir um aperto no peito ao pensar em um desaparecimento arquitetado pelo Estado brasileiro, e quanto mais se sabe dessa história, mais nauseante ela se torna. A violência que Rubens Paiva foi submetido foi a da mais sórdida possível. Foi sórdida a ponto de ser ao som das palavras “Jesus Cristo, eu estou aqui”, fato que Eliana Paiva contou ao irmão enquanto ele escrevia o livro que deu inspiração ao filme. E por mais que essa capacidade de revoltar nasça na história por si só, Walter Salles elevou esse aspecto ao máximo. Walter nos deixou tão alheios ao que ocorreu com Rubens quanto Eunice ficou durante anos. A maior e mais correta decisão do diretor foi não retratar qualquer tipo de tortura que Rubens possa ter passado durante as horas que ficou preso. Ficamos no escuro, assim como Eunice ficou. A incerteza dos primeiros momentos de prisão - da saúde, da dignidade, da vida - nos acompanham até a confirmação da morte, até a revelação das condições às quais Rubens esteve submetido. Revelação essa, possível graças a Comissão Nacional da Verdade.
‘Ainda estou aqui’por Marcelo Rubens Paiva:
Dizem que foi torturado ao som de “Jesus Cristo”, de Roberto Carlos, música que minha irmã Eliana se lembra de ter escutado enquanto estava lá:
Jesus Cristo! Jesus Cristo!
Jesus Cristo, eu estou aqui
Toda esta multidão
Tem no peito amor e procura a paz
E apesar de tudo
A esperança não se desfaz.
Termino esse texto com essa nota: obrigada a todos aqueles que revelaram essas e outras verdades ao país. A história de Rubens Paiva foi, durante o regime, uma história de ilegalidade. A história precisava de ressignificação - precisava que os fatos jogados para debaixo do tapete fossem trazidos à superfície. Com a Comissão Nacional da Verdade, a história de ilegalidade se tornou uma história de resistência e de luta. A ilegalidade foi a via que essa resistência encontrou meios de se concretizar. Agradeço a todos que trouxeram a verdade à tona, porque agora sabemos que Rubens Paiva, que Dilma Rousseff, que Marighella, que milhares de camponeses e indígenas, que minha família, foram punidos apenas por resistir.
Quando você joga pelas regras do inimigo, a trapaça é mais do que justa. Como Dilma Rousseff disse em 2008, quando ainda era senadora, mentir sob tortura é motivo de orgulho. Cometer o crime de ter coragem para resistir é motivo de orgulho.
Pequenos comentários um pouco menos sentimentais sobre ‘Ainda estou aqui’:
Fernanda Torres merece um Oscar
Fernanda Montenegro apenas olhando para a tela me fez chorar de soluçar
Walter Salles foi muito sensível ao retratar essa história da forma como retratou. Esse filme se tornou um filme sobre a família Paiva, mas que também é um filme sobre milhares de brasileiros que precisaram segurar o choro durante os anos de chumbo.
O cinema brasileiro está na sua melhor fase desde os anos 90, por mais novos clássicos!
recomendações da semana
tentando ser mais alto astral depois dessa reflexão…
Per Un’Ora D’Amore de Matia Bazar
Rockzinho anos 70 italiano que eu não consigo parar de escutar!
Tu si’'na cosa grande da MINA
Temos mais italiano…talvez eu esteja obcecada.
Mar Morto de Jorge Amado
Fiquei os últimos 3 meses sem ter tempo e energia para ler (ENEM maldito), agora que estou livre dos vestibulares, revisitei esse livro que estava encostado a muito tempo. Estou amando!
Obrigada por ler até aqui! Até semana que vem querido leitor, com mais opiniões maiores que 180 caracteres!